Naturalmente, os fãs estavam algo apreensivos com uma série de televisão com Watchmen no título. Foram muitos os que não gostaram do filme realizado por Zack Snyder e o livro de Alan Moore lança uma sombra muito densa sobre tudo o que se aproxima do nome. Contudo, a estreia da série na HBO Portugal é feita de uma fibra própria, é um exercício em como alimentar aos espectadores de forma estudada.
É uma obra de entretenimento que manda colocar as pipocas em pausa, que me mostrou segurança e, sobretudo, televisão com algo a dizer, com muito a dizer. A primeira cena decorre em Tulsa, 1921. Há violência nas ruas, destruição abundante, algumas pessoas abatidas, outras a arder enquanto suspiram as suas últimas golfadas de ar. Há que salvar o miúdo, que com ele tem apenas uma nota “Cuidem deste menino”. Esta abertura conta o Massacre de Black Wall Street.
Watchmen começa com uma declaração: quem vê é confrontado com as questões raciais e nas injustiças cometidas. Essa declaração não demora muito para que seja na mente do espectador o fio condutor que a conduzirá ao segundo episódio. Em Watchmen, os agentes da polícia precisam de pedir autorização para a arma ser libertada; em Watchmen os polícias usam uma bandana amarela para não serem reconhecidos com medo de represálias.
Uma das cenas que marca estes minutos é uma operação policial. O agente vê algo que lhe detem a atenção: contrabando da Cavalaria. O item é uma máscara Rorschach. E a cavalaria mencionada é a Sétima Cavalaria, uma organização de supremacistas brancos. “Não somos ninguém. Somos toda a gente. Somos invisíveis.” será mencionado para descrever a organização posteriormente.
Como estarão lembrados, o livro Watchmen conta uma versão alternativa da Guerra Fria. A série Watchmen liderada por Damon Lindelof (nome associado a Lost e a Leftovers) começa por contar esta tensão entre a polícia e a Cavalaria, uma tensão em crescendo durante o episódio e sempre alicerçada pela injustiça, pelo sofrimento e pela vontade de infligir sofrimento. Não é à toa que depois da introdução, a ação continua em Tulsa, Oklahoma. E também não é apenas uma coincidência que o musical Oklahoma seja abordado por diversas vezes durante este episódio – incluindo uma produção inteiramente negra.
Os polícias que agora usam máscaras foram atacados na “Noite Branca” e tiveram aproximadamente três anos de paz antes de a Cavalaria voltar a atacar depois de estar “hibernada”. A tensão é tal que num determinado momento do episódio é invocado o artigo quatro. Na prática, todas as armas ficam desbloqueadas porque as vidas dos agentes estão em perigo imediato.
Watchmen caminha rapidamente para um ponto sem retorno – que acontece no final do episódio. Antes, num vídeo protagonizado por vários membros da Cavalaria encapuzados com a máscara, é dito “uma carcaça de polícia na autoestrada ontem à noite. Em breve, a porcaria preta acumulada será lavada à mangueirada e as ruas de Tulsa serão esgotos a transbordar de lágrimas liberais”.
É um discurso violentíssimo que acaba com quaisquer dúvidas sobre o abismo que há entre os dois lados. O racismo continua a ser abordado com os Redfordations. Depois da presidência de Richard Nixon, este universo tem Robert Redford como presidente nas últimas três décadas. Redford é um presidente liberal que instituiu ressarcimentos pelos danos causados. Redfordations é a designação racista que é dada a essas indemnizações.
O mundo de Watchmen está cheio de injustiças, racismo, passando uma boa parte do primeiro episódio não a mostrar o que está errado com a segregação social, mas a mostrar que esta ficção coloca uma facção vincada e violentamente no lado errado da história. É um combate que dá os primeiros passos durante este episódio, mas com umas bases solidamente delineadas.
No centro deste combate está Angela Abar, a personagem brilhantemente interpretada por Regina King. Nas traseiras de uma pastelaria, Abar encontra o seu equipamento, a sua máscara preta e o fato com o icónico capuz, que podem ver na imagem que inicia este texto. É uma personagem com duas facetas, sendo uma zeladora da sua família e também protagonista na extração de informações assente num método pouco legal. Está também no carro quando se ouve uma sirene antes de começar a chover lulas – um mistério que “cheira mal” e que poderá ser um gancho para os próximos episódios e um piscar de olho a Ozymandias.
Já na reta final do episódio entra em cena a personagem interpretada por Jeremy Irons. Adrian Veidt, que poderá não ser apenas conhecido por este nome, vive num castelo ajudado por dois servos que a série faz questão de ilustrar como pouco comuns. Não só porque uma das personagens lhe faz uma estranha massagem às coxas, como a outra lhe dá uma ferradura para cortar o bolo. Sim, é o aniversário de Veidt, que anuncia aos seus dois criados que estava a trabalhar numa peça chamada “O Filho do Relojoeiro”.
Watchmen faz muito neste primeiro episódio, especialmente na edificação deste conflito, mas também em cenas estilizadas sem recorrer em demasia aos efeitos. A escrita não só consegue dar profundidade às diferentes personagens, como a Judd Crawford, o chefe da polícia interpretado por Don Johnson, como coloca à nossa frente diálogos que, no meio de tanta desordem e dissabores, estão impecavelmente fluídos e naturais.
Como nota de rodapé fica apenas a nota que Trent Reznor e Atticus Ross assinam uma banda sonora que se enquadra perfeitamente com o tom das cenas e com o alcance geral do episódio. Como é óbvio não sei onde nos levará o resto da temporada, contudo, sei que este episódio mostra que quase todos os receios sobre ver, novamente, o nome Watchmen ser sinónimo de dissabor podem dar descanso ao vosso pensamento. É uma daquelas séries que arranca de uma forma tão impetuosa que o bilhete para o segundo episódio está já comprado e o passe para o resto da temporada fica já apalavrado.